Sempre me corta o coração anúncios de animais desaparecimentos. Primeiro porque eu tenho animais de estimação - tenho 4 gatos - e sei o quanto nos apegamos a eles, o quanto eles fazem parte da família. Porém também sei o que sentem, porque já vivienciei a experiência de animais que fugiram por duas vezes.
A primeira foi em 2003, quando a Artie sumiu por três dias. Ela fugiu porque empregada soltava por autorização/ordem/mau exemplo de uma idiota que morava aqui em casa de favor há anos. Por fim a Artie voltou e a idiota tomou seu rumo na vida. A outra vez foi há algumas semanas quando a Milli, uma gatinha que resgatamos e pretendíamos ficar com ela, fugiu. Na verdade ela não fugiu exatamente, ou melhor: fugiu depois de sair/cair pela sacada. A sacana tem tela, mas é óbvio que um filhote consegue passar por baixo, mas nas vezes que tive filhotes em casa, eles evitavam a sacada por medo da altura. Por sorte ela caiu na grama, que estava alta e portanto fofa, mas sumiu. Procuramos por dias, colocamos cartazes, avisamos pessoal da jardinagem e segurança, armamos gatoeira, mas infelizmente não a encontramos. Acreditamos que ela tenha sido adotada por alguém: era um filhote e era uma siamesa. Cheguei a escrever para uma instituição nos EUA que ajuda na busca de animais desaparecidos, eis a resposta deles:
We really don't have much experience with lost kitten behavior. Probably the
best way to guess if she will hide or not is to answer this question: When a
stranger walks into your home, does she run and hide or show any fear? If
not, then it is possible that she WONT hide - but again, we are not certain.
But IF she DOES get scared easily and hides when anything changes in her
normal environment / territory, then it is quite possible that she could be
hiding. I wish we knew!
Have you been able to create big posters with your information? Because it's
a kitten, if she were to go up to someone it is more likely that they would
take her in. People tend to ignore adult cats, but feel sorry and will
take-in a kitten (like when you found her).
We hope that you've already found her. We're so sorry that you're going
through this!!
Enfim, depois de três semanas montando a gatoeira sem pegar nada: nem outro gato, nem um rato ou gambá (aqui eles são relativamente comuns), devolvi a armadilha e me dei por vencida. Quero crer que ela foi adotada e está bem, talvez seja só uma forma de acomodar minha consciência, mas assim como várias vezes eu resgatei e adotei filhotes, acredito, como sugerem no e-mail acima, que eles são mais facilmente resgatáveis, porque as pessoas se sensibilizam com filhotinhos. Mas quando eu me lembro dela doi, e não desejo isto a ninguém, ninguém merece passar pela dor de um animal desaparecido. Como disse a vet dos meus gatos: é melhor encarar a morte de um animal que seu desaparecimento. Concordo completamente. Com a morte você faz o luto, com o desaparecimento resta sempre a dúvida.
Adoro este texto do Rubem Alves, de quem eu leria até a lista de compras do supermercado, então deixo-o aqui registro (mais fácil encontrar no blog do que no livro na estante):
O Albergue (Rubem Alves)
Hoje escrevo sem poesia e sem humor. Essa mudança deliberada de estilo se deve ao fato de que desejo ser levado a sério pelos psicólogos que se dizem científicos. É fato que não me levam a sério. Pode até ser que gostem da minha escritura, mas literatura, para eles, não tem dignidade científica. Onde está o tratamento estatístico do material? Onde estão os gráficos? Orientanda minha que se candidatou à pós-graduação em psicologia em universidade de Campinas teve seu projeto de tese rejeitado, sendo inclusive repreendida por haver citado opinião minha, sob a alegação de que não sou psicólogo mas escritos. Imagino que Freud teria tido o destino semelhante, caso se candidatasse ao mestrado na mesma instituição. O mesmo professor o teria repreendido pelo uso das tragédias gregas e das obras de Shakespeare, sob a alegação de não serem psicologia cientifica mas simples diversão literária. Freud, de fato, juntamente com pensadores como Groddeck, Durkheim, Nietzsche, Rousseau, Jung, Hobbes, pertence a uma estirpe de pensadores diferentes dos científicos de hoje. Escreviam numa total ignorância dos métodos estatísticos e se valiam exclusivamente de uma função mental em perigo de extinção, chamada inteligência. E foi assim que deram contribuições ao conhecimento humano que não encontro paralelo na pletora de teses recheadas de gráficos, condição para serem reconhecidas como científicas.
O que vou dizer me parece óbvio, não carecendo de demonstração estatística. Mas, para tranquilizar os psicólogos científicos, direi que o que digo são apenas hipóteses. Nas hipóteses, como é sabido, não é obrigatório o aparecimento de gráficos.
Mas antes de enunciar a minha hipótese desejo indicar sua relevância. Em sendo verdadeira ela muito contribuirá, em primeiro lugar, para a sabedoria daqueles que trabalham com terapia. Eles entenderão melhor os pacientes. E, em segundo lugar, ajudará as pessoas comuns a entender a si mesmas e aqueles com quem convivem, especialmente no sentido de informá-los sobre os sutis botões que, se tocados, provocarão metamorfoses indesejáveis nos mesmos.
A formação acadêmica faz com que as pessoas tenham dificuldades para entender enunciados simples, especialmente se sua linguagem for concreta. Assim, para facilitar a comunicação vou enunciar minha hipótese no estilo abstrato e de difícil compreensão, a fim de que ele seja levado a sério cientificamente. Mas não se aflijam: logo a seguir eu o escreverei em linguagem normal. A hipótese é a seguinte:
O corpo (C) é uma unidade biológica móvel processadora
de informações elétricas (reações do tipo S - R) e simbóli-
cas (imagens, palavras); as informações simbólicas
encontram salvas na memória da dita unidade soa a forma
de programas (P), em tudo semelhantes aos programas de
computadores. A unidade C funciona de acordo com a
lógica de programa simbólico ativo no momento, sendo
que eles podem ser ativados por uma ampla variedade de
símbolos.
Passo, agora, à explicação. Os sociólogos dos conhecimento Berger e Luckmann ( A construção social da realidade) observam que enquanto os animais são o seu corpo, os homens têm o seu corpo. Tudo o que os animais são está inscrito na programação biológica do seu corpo. O seu corpo é o seu programa, seu único programa. Sábias cantam sempre do mesmo jeito, as aranhas fazem teias sempre do mesmo jeito, os caramujos fazem conchas sempre do mesmo jeito. O corpo falou, está falado. Não têm conflitos. Corpo e alma estão sempre de acordo. Por isso não ficam neuróticos. Estavam certos os teólogos que diziam que os animais não possuem alma. Porque aquilo a que se dá o nome de alma é, precisamente, a voz que discorda da voz do corpo: o corpo quer uma coisa, mas "algo" que mora nele diz o contrário.
Já os homens são diferentes dos animais. Eles não são o seu corpo. O corpo é só uma "morada" que eles possuem. Assim sendo, existe para eles uma possibilidade que não existe para os animais: eles podem seausentar do corpo. Pois não explicamos os atos incomuns de uma pessoa dizendo que ela estava "fora de si"? Mas, se ela estava fora de si, quem é que estava dentro dela, e que foi responsável pelos seus atos incomuns? Quem é que deve ser responsabilizado? Sim, o corpo foi aquele, conhecido, onde normalmente vivia o sr. ABC. Acontece que o sr. ABC estava fora. O corpo foi o mesmo. Mas quem fez não foi o sr. ABC. Ele não pode, portanto, ser responsabilizado ou punido por aquilo que um outro fez com o seu corpo. (Imagine agora que, em vez de haver apenas um "outro" que eventualmente toma posse do nosso corpo, haja vários, cada um de um jeito...)
A teoria psicológica tradicional é muito mais simples e está muito mais de acordo com o senso comum. Sua formulação clássica se encontra em Platão, havendo a teologia cristã se apropriando dela posteriormente. Ela dia que o corpo é uma prisão. A alma é a prisioneiro. Nascida num mundo luminoso e superior, ela caiu neste nosso mundo sombrio, inferior. Encontra-se agora acorrentado no corpo, caverna escura, sem poder ver as coisas tais como elas são. O que ela vê não é verdade. São apenas as suas sombras. A alma deseja subir. Quer sair da sua prisão e voltar ao mundo luminoso de onde veio. Mas o corpo, que é a sua prisão, é feito de outra substância. É matéria. E também ele deseja voltar ao seu mundo. Quer descer. A alma é leveza. O corpo é peso. existe um conflito. Mas ele não acontece dentro da alma, que é pura flecha disparada para o infinito. A alma, ela mesma, tem uma única vontade. ela almeja as coisas nobres, de cima: o verdadeiro, o bom e o belo. O conflito acontece entre o corpo e a alma. a alma é o herói. O corpo é o vilão. Os sacrifícios, as auto-flagelações, os jejuns, as abstinências, a recusa do sexo, a recusa ao prazer, as mutilações - todos esses atos de violência contra o corpo - são expressões cristãs da teoria platônicas. segundo Norman O. Brown (Vida contra a morte), a civilização e a cultura ocidentais se construíram sobre a repressão de corpo: é preciso que o corpo seja reprimido para que a alma voe.
De qualquer maneira, essa teoria nos garante que é sempre a mesma pessoa que está dentro de corpo. O corpo tem um único morador, que sofre algumas oscilações: fica alegre, fica triste, fica manso, fica bravo, fica amoroso, fica frio. Mas é sempre a mesma pessoa.
Minha hipótese é diferente - e me dá medo. Se eu a adoto é porque ela me ajuda a compreender a mim mesmo. Valho-me de um modelo retirado da informática. Na ciência o uso de modelos é muito útil. Modelos são imagens que facilitam a compreensão de algo desconhecido. Assim, por meio de um modelo é possível visualizar e entender de forma simples e direta o que é complicado. O meu modelo são os computadores. Os computadores Os computadores, para funcionar, têm necessidade de duas coisas. A primeira é chamadahardware - que é o conjunto de todas as partes materiais que o compõem. É o corpo do computador. A segunda é o software - que é uma entidade espiritual, feita de símbolos: os programas, que normalmente se encontram em disquetes. São a alma do computador. Na teoria platônica e do senso comum, cada hardware (corpo) tem apenas um software (alma). Pois na minha teoria, cada hardware (corpo) tem uma infinidade de softwares (almas, personalidades). Somos muitos. E é precisamente aí que se encontra o problema: que o corpo seja morada de muitos: anjos e demônios, bruxas e fadas, amantes e carrascos, vegetarianos e carnívoros, bufões e agente funerários, filósofos e bêbados - todos moram no mesmo corpo. O corpo é um albergue. Respondendo à pergunta que Jesus lhe fizera sobre o seu nome, o demônio lhe disse, com agudo conhecimento psicológico: "Meu nome é Legião, porque somos muitos."